Estigma em Saúde Mental: Dualismo Mente-Corpo

 A reflexão milenar do Homem acerca da origem da doença mental tem sido tumultuosa e os dogmas dominantes, que têm procurado esclarecer a etiologia e o tratamento destas perturbações, têm variado muito ao longo do tempo. Hipócrates (460 a.C–370 a.C) tentou contrariar as teorias demonológicas então vigentes, defendendo a natureza médica da doença mental. Na Idade Média (séc.V–séc.XV) vigoraram as concepções morais que preconizavam tratamentos humilhantes e desumanos. No século XVIII, Pinel, partidário das ideias iluministas, defendeu a separação dos doentes mentais dos criminosos, a desencarceração dos enfermos e a humanização dos tratamentos.

 No século XX, o movimento da psiquiatria comunitária veio advogar a reabilitação e a integração social dos doentes. Estas diferentes épocas da História da Humanidade ilustram a dificuldade de pensadores, leigos e cientistas para entenderem de forma clara e consensual a doença mental. No âmbito desta
nebulosidade, a concepção filosófica do dualismo cartesiano, defensora que o Homem é composto de uma substância pensante (mente) e uma substância extensa (o corpo), paira ainda hoje sobre as sociedades contemporâneas, contribuindo para muito do misticismo e do estigma associado à doença psiquiátrica. 

 Se por um lado, um leigo facilmente entende e aceita que uma Insuficiência Cardíaca decorre de um funcionamento deficiente de um órgão concreto, o coração, por outro lado, a compreensão de que, por exemplo, a Esquizofrenia é resultado de uma disfunção do cérebro é menos clara para a opinião pública, mas também para alguns quadrantes da comunidade científica. Esta dificuldade em entender o cérebro como a origem da doença mental contribui, sob diversas formas, para a alienação do doente, e, consequentemente, para o estigma que lhe está associado. A alusão frequente de que "o coração sente", no sentido da emoção, por muito romântica que seja, é falsa. O cérebro é que sente verdadeiramente e que determina a nossa personalidade, influenciado, claro, por vários factores biológicos e ambientais.

 Se porventura fosse possível realizar um transplante de cérebro do indivíduo A para o B, eles continuariam a ser os mesmos, mas no corpo do outro. Somos, quer queiramos quer não, um ser biológico, por muito redutora que o narcisismo humano considere esta constatação. Não existe mente sem corpo, sem cérebro. Assim, há que perceber definitivamente que os doentes mentais são pessoas que padecem de uma doença médica e compreender o seu sofrimento, as suas limitações e as suas necessidades.

 Termino referindo o estereótipo estigmatizante, veiculado frequentemente pelos meios de comunicação social e pela indústria cinematográfica de uma forma questionável e artificiosa, de que estes seres humanos são muito perigosos. A este propósito, limito-me a citar um de muitos estudos que contraria este preconceito: “não há evidências que os doentes com Esquizofrenia, em comparação com a população em geral, tenham maior risco de comportamentos violentos criminosos.” *


* Criminal offending in schizophrenia over a 25-year period marked by deinstitutionalization and increasing prevalence of comorbid substance use disorders. Wallace C, Mullen PE, Burgess P. Am J Psychiatry. 2004 Apr; 161(4):716-27.

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