Maldade vs. Doença

 Definir normalidade é um dos desafios mais importantes e difíceis da ciência, em particular da Psiquiatria. De facto, o conceito tem variado no tempo e conforme as culturas. Há pelo menos quatro definições de normalidade que ilustram bem esta variabilidade:

1) a normalidade valorativa, que toma o ideal como o normal (p.e. dizer “é normal ter dentes perfeitos” usa a norma valorativa; porém, a maior parte dos indivíduos tem algum problema nos dentes, o que não quer dizer que sejam “anormais” segundo outros conceitos de normalidade); [1]

2) a normalidade estatística, utilizada pela ciência, para a qual o “anormal” é tudo aquilo que esteja para além de um valor médio. No entanto, estar fora desse valor médio não implica necessariamente doença, tal como pode acontecer, por exemplo, com a altura ou o peso; [1]

3) a normalidade individual, que representa uma deterioração de um indivíduo em relação a um estado prévio. O QI (Quoficiente de Inteligência) de um indivíduo pode, porém, diminuir de 120 para 105 sem que, mesmo assim, seja considerado anormal; [1]

4) a anormalidade tipológica, que descreve uma situação que é considerada normal pelos três conceitos anteriores, mas ainda assim é “anormal”, podendo mesmo representar uma doença. Numa tribo indígena Sul Americana os indivíduos que não apresentem as alterações dermatológicas provocadas pela doença Pinta são excluídos. Portanto, esta condição é normal no sentido valorativo, estatístico e individual, mas, no entanto, é patológica. [1]

 A psiquiatria, ciência actualmente sem marcadores biológicos, utiliza a forma dos fenómenos psicopatológicos, constante no tempo e independente das variações sócio-culturais, para transpor a dificuldade de discriminar o normal do anormal, uniformizando critérios de diagnóstico e estabelecendo a sua credibilidade e identidade científica. Contudo, apesar da distinção ser habitualmente clara nas ciências comportamentais, está ainda bem presente nas sociedades contemporâneas a tendência de leigos, mas também de alguns membros da comunidade médico-científica, para conotar emoções ou traços de personalidade como doença.

 No entanto, per se, Tristeza não é Depressão, Euforia não é Mania e Maldade não é Psicopatia. Analisando as definições consagradas nas classificações psiquiátricas internacionais, e debruçando-me concretamente sobre o assunto sugerido no título deste artigo, infere-se que a Maldade, no sentido da prática de actos hediondos e desumanos, não é condição sine qua non da Perturbação de Personalidade Anti-social (vulgarmente conhecida como Psicopatia) ou de qualquer outra perturbação psiquiátrica. Importa esclarecer que, no âmbito forense, os ávidos praticantes de criminalidade ignóbil diagnosticados como psicopatas, embora reconhecidamente padeçam de uma perturbação psiquiátrica, não são inimputáveis, mesmo que, de forma não consensual e por vezes nebulosa, em determinadas circunstâncias a entorse caracterial que os caracteriza seja considerada um factor atenuante nas condenações judiciais.

 A Maldade (no sentido desumano que aqui se advoga) não é, pois, exclusiva dos psicopatas ou de qualquer outra perturbação psiquiátrica, mas existe como um traço de carácter independente, tal como ser divertido, bondoso ou introvertido. Compreende-se que recorrentemente se assista a uma dificuldade e resistência em aceitar que determinadas barbaridades são única e simplesmente um acto cruel, sem qualquer doença subjacente. É relativamente comum as pessoas indagarem-se acerca da monstruosidade de determinados comportamentos humanos, perguntando “como foram possíveis?” e afirmando que o perpetrador “não podia estar bem da cabeça para ter feito algo de tão grotesco e ímpio”, insinuando assim uma doença psiquiátrica como factor causal.

 Esta necessidade frequente, automática e inconsciente de conotar patologicamente acções desumanas poderá servir ao indivíduo um propósito de preservação da sua sanidade através do mecanismo da negação, que lhe recusa a possibilidade de que um ser humano (ele próprio) é capaz de as cometer. Que pensar, por exemplo, de monstros como Hitler ou do serial-killer cinematográfico Hannibal Lecter? Não serão simplesmente a personificação da pura Maldade Humana (parte da eterna natureza dicotómica do Homem)? De outra forma, o que simbolizará o Diabo? A Maldade (carácter) ou a Psicopatia (doença)?

[1] Symptoms in the mind: An introduction to Descriptive Psychopathology. Andrew Sims. 3rd Edition

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