Barbaridade ou Derradeiro Acto de Humanidade?
Barbaridade ou Derradeiro Acto de Humanidade?
Pode interessar, tendo em conta o assunto que
aqui abordarei, fazer uma pequena nota pessoal. Tive uma educação católica e
sou crismado. E beneficiei com isso, incorporando muitos valores que fazem
parte do meu esteio ético-moral. Contudo, as minhas vivências e reflexões
durante a idade adulta edificaram dentro de mim, não sei se de forma
irreversível, o ateísmo. Não obstante, reconheço a importância da
espiritualidade no conforto e esperança que oferece a milhões de pessoas, assim
como o papel fulcral no Mundo das instituições religiosas no domínio Ético,
Humano, Educativo, Social, Cultural e da Saúde. Considero, também, fundamental
o respeito por todas as diferenças, incluindo, obviamente, as religiosas (é,
aliás, este princípio que cultivo em casa própria). As diferenças, tantas e
lamentáveis vezes fontes de conflito, são o maior património da Humanidade. São
elas que nos tornam mais ricos e fortes quando não são manietadas para divisões
estapafúrdias. Por último, num espaço de pluralismo, tolerância e respeito
mútuo, não me faz nenhuma confusão que as convicções religiosas influenciem o
sentido de opinião dos indivíduos relativamente a diversas temáticas.
A Vida tem um
princípio, um meio e um fim. Nasce-se, cresce-se (os que conseguem) e morre-se.
É o inevitável ciclo vital de todos. A Vida não é, pois, apenas uma parte do
seu todo, mas a soma de todas as partes. A Morte é, digamos assim, a última
fase da Vida. Sim, uma fase, porque, infelizmente, a regra é não ser um evento
súbito e indolor, mas um processo duradoiro. Num dado momento, um interruptor é
premido e ao invés de a luz se apagar no imediato, vai esmorecendo e piscando
de forma intermitente e cada vez mais espaçada no tempo até se extinguir
definitivamente.
Uma premissa
essencial para avaliar convenientemente alguém é a singular qualidade humana da
Empatia, que estabelece a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro,
reconhecer as suas emoções por um processo interno de comparação e actualização
de vivências e declarar-lhe que o compreendemos. É, aliás, por esta via que
redigimos e hierarquiza-mos as leis. Estas são dinâmicas e evoluem em paralelo
com a progressiva melhoria do conhecimento do Ser Humano acerca de si próprio, relativamente
à sua forma de ser e agir em determinadas épocas e contextos, e do mundo que o
rodeia.
O artigo 24º
da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra que a Vida é inviolável.
Penso que esta inviolabilidade exige uma séria reflexão acerca de qual será a punição
adequada para quem a infringe no âmbito criminal. Sendo um acto com
consequências irreversíveis para a vítima, o que será mais proporcional e
justo? Considerar uma eventual redenção judicial do detrator ou garantir o
cumprimento efectivo da pena máxima legalmente estabelecida? Mas, este assunto
não cabe, agora, no que pretendo abordar. Refiro-o, apenas, para sublinhar a
complexidade e a importância que o tema Vida desperta.
Centrar-me-ei numa
reflexão, sem tabus, acerca da Morte, enquanto processo do fim da Vida, em pessoas
com condições clínicas irreversíveis às quais a ciência dispôs todas as armas
terapêuticas e paliativas possíveis sem conseguir eliminar ou mitigar um sofrimento
físico e psíquico atrozes, tornando a Vida humanamente insuportável.
Quando uma determinada
condição clínica incurável, cujo sofrimento a ciência não consegue mitigar,
viola, ela própria, o artigo 24º da CRP e origina um processo de Morte
insidioso e doloroso, profanando de forma irreversível a integridade moral e
física do indivíduo (nº 1 do artigo 25º da CRP) e sujeitando-o a uma espécie de
tortura permanente (nº 2 do artigo 25º da CRP), o que devemos (Sociedade/Estado)
fazer? Quando uma pessoa nestas condições, lúcida, consciente e sem possibilidade
de, “pelas próprias mãos”, encerrar o processo, clama por alguém que o faça,
qual deverá ser a resposta? Confortá-la com palavras que não a confortam?
Acenar-lhe com um propósito inexistente ou inalcançável? Ignorá-la?
O direito de o
indivíduo autodeterminado decidir acerca de si próprio está constitucionalmente
consagrado. A Lei possibilita que um doente recuse um tratamento com potencial curativo,
garantindo, obviamente, que não seja posto em causa o direito de acesso a todos
os tratamentos paliativos disponíveis e devidos, se assim desejado pelo próprio.
Garante, também, o direito de opção de não sermos sujeitos a manobras de reanimação
ou que representantes legais possam decidir desligar as máquinas de suporte à
vida de familiares em determinadas condições clínicas.
Os artigos 13º
e 41º da CRP estabelecem que a liberdade religiosa e de consciência devem ser
respeitadas em todas as circunstâncias e que, portanto, ninguém pode ser
sujeito a uma decisão determinada por crenças religiosas alheias, assim como
ninguém pode ser obrigado a cometer ou ser submetido a determinados actos que
colidam com a sua consciência ética, moral e/ou religiosa.
O artigo 64.º
da CRP determina que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a
defender e promover”. Porém, uma doença incurável pode debilitar
irremediavelmente um indivíduo de tal forma que se torna impossível defender ou
proteger a saúde, restando apenas (e não é de todo de menos, pelo contrário) tentar
salvaguardar a sua dignidade humana.
Por fim, quem
é e qual é o dever do Estado? O Estado é uma entidade meramente abstrata ou são
pessoas reais? Em primeiro lugar, julgo ser importante referir que os Estados
de Direito não são estanques, ou seja, apresentam um dinamismo constante
decorrente das culturas e das épocas temporais, reflectindo-as. Em segundo
lugar, parece-me inequívoco que o Estado são as pessoas, representadas, nas funções
a que cada um compete, em órgãos como a Assembleia da República, o Governo ou a
Presidência da República. Desta forma, no seio das regras democráticas, é
imprescindível que assumamos todos a realidade e que dêmos uma resposta às
pessoas nas situações limite previamente descritas. Assobiar para o lado,
ignorando a irreversibilidade do sofrimento e a espoliação da dignidade humana dele
decorrente, não pode ser nunca uma solução. Claro que a complexidade e a
seriedade do assunto exige que a discussão não fique refém de mundividências
dogmáticas de qualquer espécie e seja socialmente alargada, variada,
esclarecida e maturada. A todos cabe o dever, e o direito, de se pronunciarem.
Contudo, mesmo depois de todo o debate, continuará a existir uma realidade a que
será preciso dar uma resposta.
Assim, assumindo
a impossibilidade da imortalidade e os limites curativos e paliativos da
ciência, não deverá ser colocada à disposição dos cidadãos uma lei que, respeitando
os princípios constitucionais e os direitos humanos de todos, dê uma resposta
concreta ao problema e garanta a devida fiscalização para que não haja práticas
indevidas e arbitrárias? A Eutanásia [(vocábulo grego composto por “eu”
(bom) e “thanatos” (morte)], nas condições limite aqui descritas, será uma
barbaridade ou o derradeiro acto de Humanidade?